"No vácuo de mim eu me despenco. Porque seria preciso também
abdicar de mim mesmo para novamente reconstruir-me. Tornar a escolher os
gestos, as palavras, em cada momento decidir qual dos meus eus assumir. Já
esfacelei meu ser, já escolhi as porções que me são convenientes esquecendo
deliberado as outras. E são elas - serão elas? - que agora se movimentam
revoltadas, pedindo passagem em gritos mudos, na ânsia de transcender limites,
violentar fronteiras, arrebentando para a manhã de sol. O tremular da chama é
um aceno, convite para chegar à verdade última e íntima de cada coisa. Não
quero. Não posso restar nu, despojado de mim mesmo. Não posso recomeçar porque
tudo soaria falso e inútil. As minhas verdades me bastam, mesmo sendo mentiras.
Não é mais tempo de reconstruir. Em luta, meus ser se parte em dois. Um que
foge, outro que aceita. O que aceita diz: não. Eu não quero pensar no que virá:
quero pensar no que é. Agora. No que está sendo. Porque pensar no que ainda não
veio é fugir, buscar apoio em coisas externas a mim, de cuja a existência não
posso duvidar porque não a conheço. Pensar no que está sendo, ou antes, não,
não pensar, mas enfrentar e penetrar no que está sendo é coragem. Pensar é
fuga: aprender subjetivamente a realidade de maneira a não assustar. Entrar
nela significa viver. Sôfrego, torno a anexar a mim esse monólogo rebelde, essa
aceitação ingênua de quem não sabe que viver é, constantemente, construir, não
derrubar. De que não sabe que esse prolongado construir implica em erros, e
saber viver implica em não valorizar esses erros, ou suavizá-los, distorcê-los
ou mesmo eliminá-los para que o restante da construção não seja abalado. Basta
uma pausa, um pensamento mais prolongado para que tudo caia por terra.
Recomeçar é doloroso. Faz-se necessário investigar novas verdades, adequar
novos valores e conceitos. Não cabe reconstruir duas vezes a mesma vida numa
única existência. Por isso me esquivo, deslizo por entre as chamas do pequeno
fogo, porque elas queimam. E queimar
também destrói…"
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